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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Cap.12 - Desafio gigantesco - parte I

O dia começou a clarear por volta das cinco horas.
A equipe já estava um tanto desgastada. Afinal, atrasamos a largada - e não foi pouco - quando poderíamos dormir um pouco mais, algo importante para o que nos esperava. Seriam quase duas horas e meia a mais de sono que fariam uma grande diferença no rendimento e bem estar dos atletas. Lembro-me de conversar com o Foschini a sós sobre isso, mas não chegamos ao consenso sobre os porquês daquilo ter acontecido.
O barco finalmente se aproximou da prainha e estendeu sua rampa de entrada. Os Bombeiros e a Marinha ainda preparavam seus equipamentos para entrar na água. Do nosso lado, os últimos preparativos: protetor solar, vaselina nas articulações, mochilas nos barcos corretos, mantimentos, remédios, combustível e tudo o mais.
Antes de entrar na água, combinamos que iríamos nadar todos juntos e informamos a todo o pessoal de apoio. No dia anterior fora difícil acompanhar aos nadadores, que estavam bem afastados uns dos outros. Um barco da prefeitura e o barco dos bombeiros nos acompanhariam. O primeiro era bem grande - eu arrisco dizer cerca de 60 pés ou mais - e pouco apropriado para fornecer o suporte que o nadador precisava. Era difícil de manobrar e não conseguiria acompanhar o nadador de perto. Mas fora cedido com tanta boa vontade pelo pessoal local que estávamos muito satisfeitos - fazia parte da dificuldade da prova fazer o melhor com o que tínhamos.
A seguir, uma visão interna de um barco similar, onde confabulavam o Fabio e o Tarzan.



Já o barco dos bombeiros era pequeno e sem cobertura nenhuma - haja protetor solar! Veja a seguir:


Entramos na água às seis da manhã. Os bombeiros ainda não estavam prontos mas em poucos minutos nos alcançariam. Saímos com o barco e, a poucos metros da margem - fora do mangue e de uma ilha próxima - mergulhamos e iniciamos nosso nado.
Após pouco menos de uma hora de prova, tivemos nossa primeira baixa: o Foschini sentiu muito frio e decidiu subir no barco até que o sol tivesse maior incidência para poder voltar. Foi realmente uma pena, pois um nadador sempre transmite mais confiança ao outro quando está ali, empenhado na mesma luta com você. Mas sua sensibilidade ao frio era-me bem conhecida - ele já havia desistido na Travessia 14 Bis de 2008, o famoso ano do ciclone extratropical, por problemas de temperatura. No Velho Chico, eu estimava a temperatura da água em 24 a 25 graus. Já os demais nadadores achavam que estava cerca de 22 apenas. Nunca tiramos a prova dos nove e não saberemos ao certo - mas ele sentiu e saiu.
O ritmo de prova era bem lento. Após uma hora e meia, víamos que não chegaríamos a lugar algum naquela velocidade. Era preciso mudar a tática. Foi o próprio Foschini - já no barco - quem sugeriu e eu acatei:
- Percival, neste ritmo não vamos chegar. É melhor você ir nadando à frente dos demais.
Ouvir aquilo era como música para meus ouvidos. Assim, passei a imprimir um ritmo mais forte e fomos nos distanciando dos demais. O barco da prefeitura nos acompanhava - com o Foschini dentro dele - enquanto os Bombeiros escoltavam o Alessandro, o Fábio e o Tarzan.
O que eu desconhecia naquele momento - até por que o nadador não tem que se preocupar com essas coisas - eram quatro fatos básicos:
1. o Foschini não combinou com os Bombeiros sobre esta nova tática
2. o combustível adicional para o barco dos Bombeiros estava no barco da prefeitura - o nosso
3. os mantimentos da tripulação do barco da prefeitura estavam no barco dos Bombeiros
4. os rádios de comunicação, assim com os Bombeiros, estavam todos no barco dos Bombeiros
Já deu para imaginar o que aconteceu no restante do dia...

Seguia nadando ritmado, rezando para o vento não entrar forte. Fazia o possível para render o máximo antes da inevitável chegada dos maretões. Acredito que tenha nadado por cerca de três horas antes de sentir as primeiras ondulações na superfície da água.
De tempos em tempos - a cada meia hora aproximadamente - uma pausa para eu tomar minha maltodextrina e a pergunta sobre os demais.
- Eles estão vindo mais lá atrás. - respondia o Foschini, sequinho no aconchego do barco.
A prova caminhava bem, mas era bastante longa. Passado um pouco das nove horas da manhã, as ondas começaram. Como no dia anterior, elas começam pequenas e inofensivas e tornam-se grandes e inevitáveis. As margens do rio naquela região eram mais descobertas e o vento começou a entrar forte. Não adiantava buscar refúgio na margem alagoana ou sergipana - as ondas começaram a castigar.
O Foschini logo se apercebeu de minha situação e fazia recomendações para eu nadar colado ao paredão do lado alagoano. Eu não sentia segurança de me aproximar demais daqueles maciços, pois me sentia facilmente manipulado pelas ondas e poderia bater em alguma protuberância próxima. Não adiantava muito.
Solicitei ao Foschini que o barco ficasse ao meu lado, para me proteger do vento, de forma análoga ao que fazemos no Canal da Mancha. Ele me disse que o barco não permitia aquele nível de manobrabilidade e havia o risco de eles me atropelarem, se estivessem mais próximos.
Apanhei um bocado daquelas ondas. Estas não apenas atrapalham a coordenação dos movimentos forçando suas articulações, elas também fazem o nadador beber água inesperadamente em seu ciclo de respiração lateral. Comecei a ficar enjoado com a água ingerida. A cada parada para alimentação eu não conseguia ingerir malto o suficiente. Eu sabia que isso não era bom e que, se a energia acabasse, acabaria o meu sonho.
Após muito nadar, recebo a notícia de que estávamos a cerca de 40 a 45% do percurso. Meu nado não rendia mais o mesmo tanto do início - as ondas atrapalhavam bastante e meus ombros começaram a mostrar sinais de cansaço.
Numa parada, o Foschini me falou:
- Tá vendo aquele povoadinho lá longe? - estava tão longe que minha visão cansada e já embaçada mal conseguia discernir - Lá é a metade do caminho - disse ele.
Estava realmente difícil. Na próxima parada, já próximo da metade da prova, pedi ao Foschini:
- Me passa as nadadeiras. Eu vou usá-las.
Eu não queria, mas eu achei o melhor a fazer naquelas condições. Afinal, todo nadador gosta de cumprir o desafio sem ajuda de equipamentos. Mas a imprevisibilidade das condições locais pegou muito forte.
Daquele ponto em diante, senti-me reanimado pois conseguia penetrar as ondas com mais facilidade. Meu objetivo agora era não desgastar demais as pernas para poder suportar até o final. Em treinos eu nunca havia nadado exaustivamente de nadadeiras - somente alguns pequenos trechos. Aquela era a hora da verdade!
Deixamos o povoado para trás e segui nadando. Quando vesti as nadadeiras, já não havia sinais visuais de nossos três amigos nem dos Bombeiros - eles haviam ficado muito além das curvas do rio. Eles também estavam sentindo as dificuldades do trajeto, com toda a certeza. A distância entre nós certamente aumentaria daquele ponto em diante.
As nadadeiras fizeram uma boa diferença, mas eu comecei a sentir um cansaço maior e um incômodo da borracha que machucava meu pé, deixando-o em carne viva na região do tornozelo. Não era muita coisa, mas já começava a incomodar.
A certa altura, buscando soluções para estes pequenos problemas que se apresentam - e que podem te tirar da prova - resolvi parar alguns segundos e trocar os pés das nadadeiras entre si: o esquerdo foi pro direito e vice-versa. Aquilo deu um maior nível de conforto e me permitiu seguir nadando.
Continuei apanhando e, involuntariamente, bebendo água ao respirar lateralmente. Ainda faltava muito quando, pela primeira vez em minha vida pensei em desistir. O sentimento de "entregar os pontos" estava lá - escondido em algum lugar profundo em minha alma - e as crescentes dificuldades da prova fizeram-no aflorar e, com o passar do tempo, ele foi ganhando força e espaço em minha mente.
Aquela sensação era muito ruim. Eu queria evitá-la, mas não pude. Levantei a cabeça e disse para mim mesmo:
- Eu nunca desisti antes. Que mal faz eu desistir uma vez? Tudo bem, depois eu conto pros outros e a gente se entende. Vou desistir!
Mas nessa hora, olho em volta e percebo que o barco não estava por perto.
- Porra, meu! - pensei - justo agora que eu quero desistir vocês estão assim longe? OK, eu vou nadando até lá e então eu desisto!
O barco havia se adiantado para me indicar o caminho. Naquela região havia uma croa no meio do rio - uma pequena ilha bem rasteira coberta por uma vegetação tênue - que o nadador não enxerga direito e que os barcos têm de evitar a todo o custo, para não encalharem. Ele se encontrava algumas centenas de metros à frente bem à esquerda e eu corrigi meu rumo para encontrá-lo. Afinal, eu ia desistir tão logo os encontrasse!
Não sei se por força da natureza, se havia alguma relação com a croa, mas surgiram no leito do rio algumas algas enormes - chamadas de rabo-de-raposa - que se inclinavam na direção do fluxo do rio e ficavam oscilando para cima e para baixo num movimento como que acenando para mim. Em alguns pontos era tão densa e fechada que mal se conseguia enxergar o fundo. Nessas ocasiões eu ficava pensando:
- Que tipo de peixe (ou outro animal) pode se esconder aí debaixo?
Aquilo me provocou um duplo sentimento: de admiração pela beleza da natureza e de receio pelo que ela poderia estar escondendo de mim.
- Mais uma razão para eu desistir - pensei comigo mesmo. Cadê o barco? Cadê?

Uma pequena amostra das algas que se estendiam por centenas de metros,
talvez quilômetros do rio. Sinistras, não?

As algas chegaram a se avolumar sob meu corpo a tal ponto que não sobrava mais do que uns dez centímetros de água para minha braçada. Eu evitava a todo o custo enfiar as mãos e os braços no meio delas. Até que passei a ondular submerso sem braçadas bem próximo à superfície. A força das nadadeiras somada à correnteza do rio me permitiram percorrer aquela região ondulando - era um nado borboleta sem os braços e com os dois olhos bem abertos e o outro fechado, se é que me entendem.
Estranhamente aquele novo estilo me fez bem. Como eu mantinha-me com a cabeça submersa sem a respiração lateral do crawl, eu passei a engolir menos água. Ondulava oito vezes e respirava. Às vezes mais. Mas o fato de não estar mais engolindo involuntariamente a água me trouxe uma maior sensação de conforto. A região dominada pelas algas era menos suceptível às ondas - acho que por amortecerem reflexões de água no leito do rio ou algum outro fenômeno parecido.
O resultado? Eu não queria mais desistir - aquele sentimento ruim havia se dissipado. Ao chegar ao barco, em mais uma parada para alimentação, trocamos algumas ideias: eu comentei sobre as algas e o Foschini falou-me da croa e por que era importante desviar dela por ali, a bombordo - por que a estibordo, o rio era raso e havia risco de encalhe da embarcação. Em momento algum eu externei minha quase-desistência. Falar pra quê? Aquele sentimento não existia mais!
Esse dia foi tão longo que sinto-me na obrigação de dar uma pausa para os leitores descansarem também, até o próximo texto.
Até lá, então.


2 comentários:

  1. Uma curiosidade. Essas algas, rabo-de-raposa são apenas dessa região?

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  2. Lucia,
    Pelo que li na Internet, elas são comuns em vários ambientes, mas não sei precisar exatamente onde. Chegam a crescer bastante - em vários pontos do rio, a profundidade era um pouco maior que dois metros e lá estavam elas, em toda a sua extensão, sem deixar muito espaço para nós, nadadores.
    No Google você encontra imagens desta espécie sendo usada em aquários - mas no rio ela era muito grande, a ponto de assustar.

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