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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Cap.20 - Hora de festejar

Isso o povo nordestino sabe fazer muito bem.
Antes mesmo de nossa chegada, já era possível ouvir os fogos de artifício ecoando pelos ares. Ao pisar em terra firme, um breve diálogo com o Prefeito Israel e sua esposa, que foram de uma gentileza inenarrável. Além da conversa agradável, eles nos premiaram com uma linda estátua feita em barro pelo povo local e um pacote de informações sobre a cidade de Penedo que é talvez a mais desenvolvida do estado após a capital, Maceió.
Ao seu lado, o Capitão Alexandre, maior autoridade da Capitania dos Portos de Maceió, que nos apoiou incondicionalmente em nosso projeto - a infraestrutura da Marinha que nos acompanhou foi autorizada por ele - também nos recebeu com sua enorme simpatia, um forte aperto de mão e um grande sorriso no rosto. Gentilmente ele nos ofereceu uma camisa polo dry-fit na cor azul clara com a insígnia da Marinha simplesmente chiquérrima que eu uso com muito gosto e ótimas recordações!
E a alegria não parava, agitada pelo ritmo dos grupos locais, repletos de gente bonita.


Havia uma grande faixa com os dizeres: "Sejam bem-vindos" - e aquilo tudo era para nós! Estávamos muito felizes por ter chegado e pela valorização dada ao nosso projeto.
E a festa continuava firme e forte. Pensando bem, se nós nadamos mais de trinta horas para chegar ali, não custava nada eles dançarem uma horinha, não?


Até mesmo a música tema da vitória do Ayrton Sena foi entoada:


No calor da recepção, aproveitamos para dar algumas entrevistas para a imprensa local e, ao final de tudo, tiramos uma foto com nossos companheiros de TV, que cobriram nossa largada de Piranhas e nossa chegada em Penedo.


Nós não esperávamos tudo aquilo. A repercussão em toda a região foi muito grande. Afinal, aquele bando de cinco destemidos nadadores estava ali para defender a mesma causa pela qual a população ribeirinha também lutava: a conservação do Rio São Francisco.

Hora de descansar. Hora de tomar um bom banho, o suficiente para retirar a vaselina das articulações e rumar para um almoço gentilmente oferecido pela cidade de Penedo.


Através daquela simplória janela, uma vista deslumbrante para o rio, que era de tirar o fôlego. Coisa que não estamos acostumados em nosso dia-a-dia e que valem a viagem à região. Só faltou a Canoa de Tolda singrando aquelas águas...


Ao final, as despedidas de nossos anfitriões e a separação do grupo. Em poucos minutos eu já me dirigia, na companhia de meu irmão Pérsio, em direção de sua residência, em Aracaju. Deixei para trás uma região que me acolheu com extrema generosidade. Deixei um grupo que teve seus percalços, mas soube levar os objetivos de nosso projeto à frente. Levei comigo a alma profunda e indelevelmente tocada por impressões amplamente positivas.
Missão cumprida - e comprida também!
Em nome do grupo, agradeço a todos os que nos acompanharam e nos apoiaram nessa jornada - local ou remotamente. Até uma próxima ocasião, se Deus assim o permitir.

Cap.19 - A etapa final

Marcamos nossa saída para as sete da manhã, aproximadamente. Aquele seria um dia especial, onde passaríamos por experiências diversas. Podemos destacar a passagem por baixo da ponte logo no início do dia, a cobertura pela TV Gazeta de Alagoas e nossa chegada em Penedo, a maior das cidades visitadas ao longo de nosso trajeto.
A largada seria o mesmo ponto onde aportamos no dia anterior. Havia um pequeno grupo de pessoas no local - a maioria deles envolvida com nossa logística - que foram muito prestativos conosco. Ali ao lado o barco local nos esperava enquanto nossos amigos colocavam na água o jet-ski da Marinha e o barco dos Bombeiros. Só havia um probleminha, de difícil solução. Vejam a seguir o nosso grupo defronte ao barco disponibilizado pela prefeitura e prestem bastante atenção à foto para perceber o enorme e quase intransponível problema que se apresentava:


Aquilo poderia ser considerado um cataclisma natural, uma afronta e até mesmo um despautério! O barco tinha um emblema do Corinthians logo ali, embaixo da cabine do piloto. Foi um golpe baixo para o moral dos nadadores! Mas no esporte nem tudo é alegria. Tínhamos que aprender a superar os problemas e ali estava mais um deles.
Não está na foto acima, mas logo à esquerda, descendo o rio, encontraríamos a ponte. Dá sempre uma adrenalina mais forte passar sob pontes. A discussão naqueles dias era por qual lado deveríamos passar. Pela direita, sob o arco metálico, dizia-se que a profundidade era mais adequada, mas a correnteza era mais forte. Pela esquerda, estaríamos mais próximos das regiões de remanso do rio, onde as ilhas começam a surgir evidenciando um misto de beleza natural e o temor dos assoreamentos provocados pela ação do homem. (Acabamos passando pelo lado direito, com mais correnteza, mas infelizmente encontramos alguns intensos sinais olfativos da intensa presença humana na região por ali.)
Saímos sob os acenos amigos da população local e iniciamos nossa última etapa. A estratégia do dia seria a de nadarmos todos juntos - desta vez, era pra valer. A pressão pelo tempo era menor, já estávamos ambientados ao rio e projetávamos uma duração de um pouco mais de seis horas para superar o trajeto de 35 km que nos separava de Penedo.
Naquele ponto, o Rio São Francisco cortava a Zona da Mata, região conhecida por maiores índices pluviométricos, que se traduziam em paisagens mais verdes em seus arredores. A topografia também era mais plana e, ao longo do caminho pudemos ver vários campos de pastagens. Em determinados momentos onde nos distanciávamos um pouco mais uns dos outros - dentro do que poderia ser considerado tolerável para o conceito de "nadar juntos" - lembro-me de um diálogo curioso que tivemos, ao esperar o Tarzan e o Fabio, que vinham um pouco atrás e próximos a uns boizinhos que pastavam sossegadamente num grande campo às margens do rio. Para passar o tempo e nos divertir, tentávamos imaginar a conversa entre o Tarzan (afinal, ele era o Rei da Selva, ou melhor, o Rei do Cangaço) e o boi. Seria mais ou menos assim:
- Mim Tarzan. Você, boi.
- Muuuuuuuuuuuu, ele retrucaria de volta.
- Mim nadar. Você, pastar.
- Muuuuuuuuuuuuuuuu - enfaticamente, é claro!
- Mim ir embora. Você, ficar.
- Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu - já entoado com saudades...
Logo descobrimos por que eles vinham mais atrás - o Fabio estava com algum mal estar. Acho que era um pouco de dor de cabeça. Disponibilizamos todo o nosso arsenal de medicamentos - eu mesmo havia trazido dúzias deles, para os mais variados fins - para que ele tomasse o que mais lhe ajudasse. Enviamos o recado através dos Bombeiros e logo ouvimos notícia de que estava tudo sob controle.
O rio era bem largo naquela região. Sua profundidade era baixa - por vários quilômetros, nadávamos com cerca de três metros de água apenas, mas, por vezes, se mergulhava numa escuridão imensa, indicando um aprofundamento repentino de sua calha.
A esta altura do campeonato, já havíamos desenvolvido várias técnicas para analisar a direção da correnteza. Uma delas incluía mergulharmos até o fundo do rio, tocar suas areias e observar a nuvem que se levantava e que direção ela tomava. Para nossa surpresa, no entanto, nem sempre a direção indicada pela areia estava alinhada ao percurso que se vislumbrava na superfície. Aprendi mais tarde, fazendo minhas experiências, que a correnteza poderia estar levando o nadador para uma grande depressão na calha do rio. Era um momento em que as areias claras eram substituídas por uma cavidade enorme e escura. Não era bonito de ver, mas era o que tínhamos pela frente.
Nadamos com bastante tranquilidade nesse trecho. Um fato curioso ocorreu após umas 3 ou 4 horas de prova. Foi quando eu ouvi um zum-zum-zum danado proveniente de nosso pessoal de apoio. Eles estavam gritando entre si, sinalizando algo que deveria ser importante. Parei de nadar e olhei para trás e quase não acreditei no que vi. O Foschini havia se desviado gradativamente do caminho, virando, virando, virando, até que ele começou a nadar contra a correnteza. Isso mesmo - ele começou a subir o rio e nem se deu conta. E o pior: ele estava levando o Alessandro consigo!
Aquilo foi muito engraçado. Eu não conseguia parar de rir. Esperei o Foschini se achegar e não podia perdoar essa. Afinal, ele vivia dizendo que eu nadava torto - o que não deixa de ser uma verdade - e agora a situação se invertia. Não pude deixar de comentar carinhosamente como estava acostumado a ser tratado por ele:
- E aí, Pedro Bó! Querendo levar o Alessandro pra casa pelo rio? (O Alessandro é mineiro e é o que mora mais perto da nascente do Rio São Francisco.)
Como resposta eu ouvi algumas palavras desconexas e absolutamente insuficientes para justificar tamanho desvio de rota.
O ritmo nesta última etapa foi bastante tranquilo. Eu nadava, mergulhava até o fundo do rio para pegar conchinhas e espalhar a areia. Dava até para admirar um pouco da paisagem. Não tínhamos pressa, pois estávamos nadando todos próximos.
Chegando próximo à cidade de Penedo, o vento começava a importunar e a formar alguns maretões. Ainda assim, o ritmo era adequado para cumprirmos nosso horário. Até o ponto onde ficamos no meio do rio, em volta do barco dos bombeiros, esperando a equipe da TV chegar para nos filmar nesta etapa final. Ficamos ali papeando pelo menos uns trinta minutos - se não mais - matando o tempo. Dava para se avistar a cidade de Penedo ao fundo, no lado oposto do rio. Curiosamente, a largura do rio era aparentemente muito grande nesta região. Mas o que eu não havia visto era que Penedo ficava ligeiramente acima do ponto onde estávamos, isto é, teríamos que subir uma parte do rio para chegar até lá.
Mas como seria possível descer o rio e, ao avistar a cidade, ela já ter ficado para trás? Muito simples. Tão simples que não foi percebido por nós: havia uma ilha enorme no meio do rio e havíamos tomado o lado errado da ilha para nadar. Se, à montante da ilha, tivéssemos escolhido descer por seu lado esquerdo, daríamos de frente com a cidade. Como estávamos do outro lado, teríamos que subir uma parte do rio.
Depois de terminada a travessia, eu me perguntava por que eu não havia visto isso antes. Vejam o mapa do Google que eu consultei e isto ficará claro.


Como se vê (ou não se vê), havia muitas nuvens que nos impediam de identificar a ilha antes de Penedo. Vejam agora uma foto de outro satélite da mesma região, sem as nuvens.


Agora a ilha ficou bastante visível, não? Pois é. Faltou conhecimento e estudo do trajeto. Eu não estivera antes na cidade e desconhecia totalmente o fato. Talvez o Foschini pudesse conhecer, mas ele não se manifestou em momento algum sobre a rota alternativa.
Após uma certa espera, o barco trazendo os cinegrafistas da TV Gazeta chegou e pudemos retomar nossas braçadas no trecho final. Nadávamos todos juntos para aparecermos todos na mesma tomada da filmagem. Mas a fama dura pouco e logo tivemos que voltar a encarar o ocaso de nosso desafio, que nos reservava uma situação inesperada: subir o rio algumas centenas de metros.
Eu não fazia a menor ideia que estávamos subindo o rio. Sentia que estava fazendo mais força que o normal e que o rendimento não era o mesmo, mas estava lentamente avançando em direção ao meu objetivo. Logo cruzei com o Fabio que, ofegante, me disse que não iria conseguir chegar naquelas condições. Para minha surpresa, o barco da prefeitura encostou e, um após outro, foi arrebanhando os cinco nadadores para uma ajudinha de alguns metros rio acima. O nadador se agarrava às defensas do barco e ele os rebocava arrastando-os pela água. Aquilo não deve ter durado nem mesmo um minuto e nos impulsionamos lateralmente no casco do barco para nos afastarmos do mesmo e, com isso, evitar ser puxados por sua hélice, situada na popa. Ainda restavam algumas poucas centenas de metros até a chegada. Por estarmos nadando contra a correnteza, não havia espaço para esmorecimento. Impus um ritmo forte, aproveitando o máximo possível a excursão de meus braços, com ampla rotação de ombros e forte batida de pernas. Ainda estava sobrando energia. Pensar que logo estaríamos chegando era extremamente recompensador.
Aos poucos observei a margem e os contornos das construções tomando forma. Nos poucos momentos em que a cabeça estava fora da água, era possível ouvir os fogos de artifício estourando no ar em nossa homenagem.
Havia uma balsa ao lado do local de chegada - uma grande chata que fazia a travessia de carros e pedestres entre Alagoas e Sergipe. Eu estava chegando à jusante da balsa, enquanto a chegada estava à sua montante. O barco da Marinha veio para me reorientar e apontar o caminho. Eu sinalizei que entendi sua orientação, mas meu trajeto fora proposital, com o objetivo de conseguir nadar um trecho na sombra da balsa. Faltava pouco, mas os metros finais foram nadados na direção oposta à correnteza - não mais obliquamente à mesma - o que aumentou a dificuldade do trecho. As lembranças dos longos treinos nadados nessas horas me deram toda a autoconfiança necessária para chegar ao final. Mas estava sobrando braço naquela hora!
Parei a poucos metros da chegada. Havia autoridades ali para me receber. Percebi que eu era o primeiro a chegar. Os pés já alcançavam o leito do rio. Olhei para trás e procurei por meus companheiros, mas em vão - naquela imensidão de água não era possível visualizar os demais nadadores. Lentamente me encaminhei em direção à margem, onde uma mão amiga se estendeu e me deu a firmeza necessária para finalmente colocar os pés em terra firme.
Como disse o padeiro pro John Lennon: "o sonho acabou". Agora era a hora de comemorar. Fui recebido pelo prefeito de Penedo e a primeira dama, assim como pelo Capitão Alexandre, da Capitania dos Portos de Maceió. Havia tendas montadas, com a banda local, a Fênix, tocando músicas locais e muitos jovens dançando em nossa homenagem numa festa linda e inesquecível. A população local também compareceu em peso para prestigiar. No meio da multidão pude logo avistar o Pérsio, meu irmão, que viera de Aracaju para me recepcionar e compartilhar de nossa alegria.
Poucos minutos depois chegaram meus companheiros: Rodrigo Cavalcante (Tarzan do Cangaço), o Alessandro e por fim, juntos, o Fabio e o Foschini.
Independentemente das distâncias nadadas por cada um de nós - meus 170 km, o Fabio, Alessandro e o Tarzan com admiráveis 153km e o Foschini com seus 118 km - o sucesso do projeto estava na mensagem que trazíamos em comum: "Preservem o Rio São Francisco!"

A descrição da festa eu deixo para o próximo capítulo. Não percam!



Cap.18 - Preparações para o último dia

Ficamos bem acomodados naquela pousada, providenciada pelas autoridades de Porto Real, mas em território sergipano. Sim, apesar de termos chegado na cidade alagoana, esta nos acomodou na cidade de Propriá, no estado vizinho. Isto somente foi possível por que havia uma ponte ali pertinho que unia os dois estados.
Ao longo dos quase 210 Km do baixo São Francisco, só conhecemos duas pontes entre Sergipe e Alagoas: a primeira delas fica à montante da cidade de Piranhas e nós, nadadores, não tivemos o "prazer" de passar por debaixo da mesma nadando. A ponte era esta:


Veja um pequeno vídeo de como se comporta o Rio São Francisco nessa ponte, entre Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE).
Primeiramente, à montante da ponte:


E agora, à sua jusante:


Como se vê, a trubulência é grande nessa região e não se recomenda a ninguém tentar nadá-la sem conhecer muito bem a real conformação do leito do rio, as vazões de Xingó (uma vez que ela fica a poucas centenas de metros à jusante da barragem), o nível das águas e outras variáveis. Cada perturbação que se vê na superfície indica que existe alguma estrutura rochosa sob a água que a provoca. Percebe-se que em alguns pontos, a água faz um movimento rotacional e volta a subir o rio, formando os famigerados e frequentemente mencionados redemoinhos. Certamente é uma região muito mais ameaçadora do que as temidas Caçamba e Mateus descritas em nosso primeiro dia de travessia.
Enfatizo que nossa travessia não incluía passar por baixo desta ponte e, de fato, não o fizemos.
A segunda ponte, próximo da qual estávamos lotados ao final do terceiro dia, apresentava uma conformação do Rio São Francisco bem mais comportada, com poucas corredeiras e perturbações que poderiam preocupar um nadador consciente em busca de segurança absoluta, nossa grande prioridade. Nossa pousada ficava a menos de uma centena de metros desta segunda ponte:


Ao final daquela tarde já estávamos liberados para nos programarmos para o dia seguinte. Não sem antes fazermos uma nova reunião de planejamento com nossos inseparáveis ccompanheiros da Marinha e do Corpo de Bombeiros de Alagoas. As perguntas que não queriam calar eram: por que nós combinamos uma coisa no dia anterior e fazíamos outra? O tema era recorrente e dizia respeito naquele dia às atitudes do Foschini, que deixou de nadar com o Alessandro, distanciou-se desnecessariamente do grupo, não procurou mais a alimentação provida pelos barcos de apoio nos quilômetros finais e entrou na região portuária de Porto Real sozinho, correndo perigo de ser atingido por alguma embarcação local. Eu não tinha a resposta a todas essas perguntas, pois não diziam respeito a mim. Só podia responder por minha atitude de acompanhar o Alessandro quando percebi que ele fora deixado para trás pelo Foschini.
No dia seguinte, perguntei ao Foschini o que tinha acontecido e comentei com ele das chamadas que eu havia levado, sem ter direta responsabilidade por tudo aquilo. Entre uma história aqui e outro depoimento ali, pude juntar os fatos e percebi que a rivalidade estabelecida entre o Foschini e o Fabio naquela fatídica noite em Traipu, onde, entre ofensas pessoais, um desafiou o outro e eles quase saíram no braço, era a real razão da corrida desenfreada de ambos no terceiro dia, que os levou a nadar forte e até mesmo recusar a alimentação nos dez ou doze quilômetros finais. Um crianção de 62 anos e outro com seus trinta e poucos competiam entre si para provar quem era o melhor. De um lado, aquela situação fez-me rir tamanha a sua infantilidade - de outro, deixou-me deveras preocupado pois a segurança da prova fora deixada de lado - e o pior, por seu principal organizador! Isso foi pior que o "Na hora a gente vê."
Ainda na pousada propriense, passamos o Fabio e eu mais alguns momentos emocionantes na cozinha preparando nossas maltos em meio a um ambiente que não era nenhum primor de limpeza e que, por essa razão, nos proporcionava a companhia de insetos repugnantes semelhantes aos já descritos em Pão de Açúcar. Aquela experiência me deixou extremamente comedido e seletivo no café da manhã do dia seguinte - talvez com muita "vitamina B", se é que estou sendo claro...
Naquela mesma noite tive a chance de falar com o meu irmão Paulo, que conseguiu me encontrar no celular. Algumas das cidades por onde havíamos passado não tinham sinal adequado e nossa comunicação ficou bastante comprometida. Passei para ele uma rápida atualização dos fatos, que foram repassados ao restante da família. É sempre bom sentir o apoio da família!
O grande sucesso natatório até aquela etapa era muito mais importante do que os eventuais percalços de nossa aventura e estávamos ávidos pelo quarto e último dia.

Cap. 17 - O terceiro dia

Acordamos BEM TARDE naquele terceiro dia: cerca de cinco e meia da manhã!!! Foi muito bom para dormir um pouco mais. O astral ficou mais leve assim. A recepção do pessoal de Traipu foi muito boa - um café da manhã para muita gente circulando por ali que eu nem conhecia e que foi muito rápido. Eu mesmo cheguei meio atrasado e não deu para comer adequadamente.
Arrumamos os mantimentos preparados no dia anterior - eu e o Fabio por aqui e o Alê por lá - e fomos atrás do gelo solicitado ao pessoal em terra. Aconteceu que, desta vez, o assistente da prefeitura não conseguiu trazê-lo e ficamos sem gelo. É a profecia mais uma vez: do que adianta a cidade se dizer pescadora se o gelo não chega a tempo para nossa largada? Por sorte nossa, havia duas pedras grandes de gelo no freezer que repartimos - uma para a minha mala térmica e outra para a do Fabio. Mas a temperatura da malto naquele dia estaria comprometida, com certeza.
Antes de sair, a decisão que deveria ser tomada na noite anterior ainda estava pendente. Quem iria nadar junto com quem? O Foschini sugeriu que ele iria nadar com o Alessandro e os outros três deveriam formar o segundo grupo.
Era mais que óbvio que esse esquema não iria funcionar, pois o ritmo de nado dos dois - Foschini e Alessandro - eram muito diferentes entre si. Eu tentei contra-argumentar, mas não havia clima para discussão: a equipe estava dividida - naquela altura do campeonato, o Foschini só não havia discutido com o Alessandro. Com  base nessa divisão, repartimos as maltos entre os dois barcos - novamente teríamos um da prefeitura e um dos Bombeiros para estar de acordo com os nadadores que seriam acompanhados.
Nossa largada naquele dia foi bastante festiva - tiramos fotos com nossos anfitriões, o sol já brilhava forte, o astral da cidade era muito positivo.

Nossas simpáticas anfitriãs de Traipu com nossos inseparáveis amigos Bombeiros.

"É nóis na fita", com nossos anfitriões de Traipu, momentos antes da largada.

Novamente entramos naquela imensidão de rio, em direção ao infinito. O bom de se fazer uma travessia de grande monta é isso: você começa a nadar e não vê o final. Tudo o que você sabe é que ele está muito longe!
Esse trajeto prometia ser mais fácil que no dia anterior - nada seria pior, eu posso afirmar. Mesmo assim, sabíamos que alguns maretões seriam inevitáveis. Nosso objetivo: a cidade de Porto Real do Colégio, situava-se 33 km  rio abaixo.
A cidade leva este nome por que ela recebeu a visita do Imperador D. Pedro II em sua excursão pelo São Francisco lá pelos idos de 1859, isto é, há algumas poucas semanas atrás. Rsrsrs.
Entramos na água com o pesar de uma despedida. A recepção e a estadia que nos foram oferecidas foram simplesmente inesquecíveis. Levaremos ótimas lembranças da cidade. Como se vê na foto acima, às sete da manhã o sol já brilhava forte. Iniciamos nossas braçadas lentamente até estabelecermos um ritmo de prova - aquele ritmo que o nadador é capaz de manter por horas a fio dentro de uma estabilidade de seu condicionamento físico.
Nesta região, o Rio São Francisco já era bem mais raso, não havia corredeiras nem redemoinhos, mas os maretões estariam por lá - já nos haviam avisado sobre a inevitabilidade de encontrá-los no meio do caminho. Em vários pontos, o rio mostrava sua vastidão, abrindo suas margens ao passo que avançávamos.
Assim seguimos nadando - na configuração inicialmente proposta - o Alessandro e o Foschini vinham um pouco atrás, não mais do que uns cem ou duzentos metros.
Nos raros momentos em que estávamos todos juntos, a parada para alimentação era uma verdadeira festa, no sentido literal da palavra. Eu me mantive fiel à minha dieta de malto, assim como o Fabio também. Mas, depois da malto, comer um docinho ou um pêssego em calda não fazia mal a ninguém. Eu provei um de cada - não mais do que isso. O Foschini comia os docinhos de mão cheia - enfiava a mão no pote e, quantos saíssem ele comia.
O mais curioso e motivo de muitas risadas no grupo era a ginástica toda que tínhamos de fazer para ficarmos juntos ao barco. Nós nos agarrávamos a ele como podíamos e éramos arrastados pelo atrito com a água - parte pela correnteza, parte por sua motorização.

Aproveitávamos o momento para "retocar a maquiagem", isto é, passávamos um pouco de protetor solar no rosto ou, como se vê o Alessandro na foto acima, usávamos Hipoglós também com esta função. (Não, ele não está enfiando o dedo no nariz, pessoal!)

Como de costume, começou a ventar entre 9 e 10 horas da manhã e os maretões se apresentaram. Neste momento eu estava ao lado do Fabio, que espontaneamente falou:
- Oba! Lá vêm as ondas. Hora de ondular. Vamos ondular, pessoal!
Foi muito bom ouvir aquilo, por que numa única palavra - ONDULAR - ele conseguiu demonstrar a técnica a utilizar para se reduzir - nunca eliminar - os problemas para nadar em meio a ondas intensas. E assim o fiz. Percebi que o ritmo que eu ondulava deveria estar em consonância com a frequência das ondas que chegavam.
Eu já havia tomado aulas com o Agnaldo - meu técnico em minha Travessia do Canal da Mancha - e também com o Glauco Rangel - experiente nadador de águas abetas -, mas nunca havia conseguido transformar seus conselhos em  menor atrito com as ondas. Ali no Velho Chico eu consegui descomplicar e ondular.
O rendimento aumentou - estava muito mais fácil pelo aprendizado e pelos maretões, que foram mais comportados neste dia. O rio mostrava-se mais sinuoso. Uma curva aqui, outra ali, uma ilha no meio, algas em vários pontos.
Como a água estava bastante mexida, fica mais difícil de acompanhar visualmente a posição de todos os colegas. Assim, o Fabio e o Tarzan se descolaram de mim na segunda metade da prova. O Foschini, que vinha atrás com o Alessandro, passou por mim e seguiu firme em frente. Eu reduzi o ritmo, aguardei o Alessandro, que logo se achegou e fomos nadando juntos até o final.
Mais uma vez nossos mantimentos, que estavam divididos de um jeito entre os dois barcos, passaram a ser distribuídos aos nadadores em momentos diferentes. Eu podia ver que o Foschini, o Fabio e o Tarzan estavam bem à frente pela posição do barco que os acompanhava - era o barco grande da prefeitura de Traipu. Conosco seguiam os bombeiros. Minha malto estava no barco à frente, que de tempos em tempos tinha que voltar para me alimentar. Ainda bem que as distâncias naquele dia eram as menores, senão poderíamos ter problemas maiores.
Nos últimos dez quilômetros de prova, perdemos o contato visual com os três que estavam à frente. Havia algo ali que os motivava a nadar mais rápido e que eu não conseguia entender. Eu e o Alessandro mantivemos nosso ritmo.
Próximo à chegada em Porto Real havia uma ilha que dividia o rio em duas metades. Não sabíamos ao certo de que lado entrar. Fomos pela direita e logo o barco dos Bombeiros veio nos avisar que seria melhor irmos pelo outro lado, pois a entrada da cidade estava se aproximando. Nadamos subindo o rio uma centena de metros para poder contornar a ilha e voltamos a encontrar o leito do rio forrado com aquelas algas espessas que não nos davam espaço para nadar. Era uma sensação horrorosa, nadávamos para lá e para cá em busca de um canal de água sem algas, mas a região era infestada com os rabos-de-raposa.
A entrada da cidade estava a uns quinhentos metros de distância e já percebíamos um ou outro barco diferente dos nossos circulando nas redondezas. Motivo de atenção redobrada para nossos amigos da Marinha e os Bombeiros, sempre preocupados com nossa segurança.
Quando chegamos à cidade, havia uma pequena rampa de concreto com um degrau submerso que nos conduzia a uma grande área cimentada onde nos esperavam um sem número de pessoas e as autoridades locais - aí inclui-se também a prefeita da cidade. Os últimos metros, só para brincar, eu nadei no estilo borboleta.
Havia uma multidão ali à nossa espera. Enquanto o povo queria prestar-nos uma pequena homenagem e combinar o local onde faríamos um belo almoço, meus pés ardiam no calor do cimento e a situação estava ficando difícil de suportar. Ao mesmo tempo, tínhamos que dar atenção aos nossos anfitriões e resistir bravamente à temperatura local. Quando o grande barco finalmente aportou, pedimos ao Eugênio, que cuidava de nossas coisas, que nos trouxesse os chinelos para aliviar o problema. São pequenas coisas que podem ter um grande impacto na hora H.
Após mais de hora de cumprimentos, arrumação e ordenamento das ideias torrando sob o forte sol do São Francisco, fomos conduzidos à nossa pousada, onde pudemos tomar banho e almoçar junto aos nossos anfitriões.

Calorosa recepção em nosso almoço ao chegarmos em Porto Real do Colégio.

Foi o primeiro dia em que tivemos tempo para descansar um pouco mais. Terminamos o almoço depois das 16 horas e estávamos liberados para nossa preparação para o último dia.

Cap. 16 - Homenagens e BBB

Após termos chegado e conversado com  o pessoal local à beira-rio - a própria prefeita em exercício de Traipu veio pessoalmente nos receber (vejam a sua simpatia na foto abaixo - ao fundo, o Alessandro, eu e o Jackson) - andamos até um predinho ali em frente onde uma grande recepção nos aguardava. Havia salgadinhos e refrigerantes - tudo o que um nadador cansado de beber matodextrina mais queria naquele momento.


Conversamos com as autoridades e as personalidades da região. Os amigos locais se aproximavam e nos eram apresentados e pudemos descansar um pouco. Estávamos no primeiro andar, em uma sacada com vista para o rio e para a população que se aglomerava lá embaixo. Num sistema de som previamente armado, se iniciaram  os discursos e recebemos algumas palavras de incentivo muito valorosas de nossos anfitriões.
O Foschini ficou emocionado com o número de crianças que estavam ali nos assistindo. Eu fiquei emocionado com as coxinhas de frango, os salgadinhos de queijo e os croquetes de carne que nos serviram! Éramos convidados especiais e fomos tratados como tais. Não me esqueço dos inúmeros copos de refrigerante que tomei - com muito gás, para esquecer da água do rio, que eu não queria nem ver de perto. (Graças ao esporte, eu não bebo cerveja até hoje!)
Muitos discursos de todos os nossos amigos. O evento era um momento de festividade - algo inimaginável para aquela cidadezinha pacata do interior.

É nóis na fita, digo, na festa!

Nossos anfitriões nos levaram até as pousadas onde tomaríamos nosso merecido banho, jantaríamos, arrumaríamos a infraestrutura para o próximo dia e dormiríamos o sono dos deuses. Mal sabíamos que outros momentos inesquecíveis nos aguardariam...
Em meu quarto ficaram comigo o Fabio e o Tarzan. No andar de baixo estavam nossos amigos: o pessoal da Marinha e os Bombeiros. O Foschini e o Alessandro ficaram numa pousada logo do outro lado da rua.
Era uma muvuca geral na pousada - muita gente chegando e muita gente preocupada em nos acolher. Nesses vai-e-vens no prédio, deparei-me com nossos amigos do suporte à prova, que me chamaram para conversar. Eles tocaram num tema muito apropriado e sensível.
- Percival, precisamos de sua ajuda aqui. O que a gente tem combinado não tem funcionado a contento. Nós temos que mudar o esquema, pois a gente combina uma coisa e acontece outra! Você viu o que aconteceu hoje? Primeiro, ele diz que vai sair às três e meia e o barco chega às cinco. Depois, sem avisar, você precisa nadar mais forte - até aí entendemos - e o Foschini deixa um dos barcos sem combustível? Ontem ele devia nadar prioritariamente ao seu lado e o vemos acompanhando os outros três nadadores ou sozinho boa parte da prova. Nós não entendemos nada. Como podemos corrigir isso?
Tentei explicar o que pude - na verdade, eu não podia explicar por que também não entendi esses enormes desencontros de organização e de comunicação que nos prejudicaram a todos. Mas sugeri que fizéssemos uma reunião pré-operacional após o jantar. Estariam presentes os nadadores, a Marinha, os Bombeiros e o pessoal local que nos acompanharia no dia seguinte.
Assim o fizemos. Tomamos um bom banho, arrumamos nossas camas, cuidamos de nossos pertences, tivemos um jantar bastante animado com muitas pessoas da região nos acompanhando. Chegou a hora de nossa reunião. Atravessei a rua e fui chamar o Foschini para participar. Sentamo-nos à mesa três nadadores (Foschini, o Fábio e eu), dois Bombeiros e dois oficiais da Marinha, além de algumas pessoas que nos acompanhariam no dia seguinte - a Marcilene, que era enfermeira em Traipu e alguns rapazes conhecedores do rio.
A reunião iniciou-se com a discussão dos desencontros organizacionais anteriores - educadamente colocado pelos Bombeiros. Eu não tinha o que falar e deixei o Foschini tentar explicar. Mas o clima "democrático" que se estabeleceu naquela reunião, onde todos podiam se manifestar acabou caminhando para uma séria discussão entre o Foschini e o Fábio. Este último colocou inúmeros pontos de descontentamento na mesa, desde a proposta fracassada e indecente de última hora de fazermos um revezamento, passando pela irresponsabilidade de deixá-los sem combustível, até a chegada "de mentirinha" ao final do dia daqueles que não nadaram a distância toda. No fundo, eu sabia que o Fabio tinha uma certa razão, mas o formato da conversa infelizmente caminhou para "o lado negro da força". Começaram entre os dois os insultos e desafios do tipo: "eu nado melhor que você", "você vai ver amanhã", etc. - para não citar as demais trocas de gentilezas e minimizar aqui o tamanho do escândalo. Eu não sabia onde me esconder - tive muita vergonha de tudo aquilo. Tentava interromper a discussão, botar panos quentes e estava preocupado que os dois se atracassem, o que não estava longe de acontecer. No final, o Foschini foi embora xingando e os que ficaram - entre mortos e feridos - combinariam os procedimentos para o próximo dia.
Mas como seria possível combinar quem nadaria com quem naquele clima Fabio-Foschini reinante? Deixamos essa decisão para o dia seguinte. Ainda assim, conseguimos uma boa coordenação dos presentes na reunião. Um ponto de grande avanço foi que teríamos um conhecedor do rio, gente da região, presente em cada um dos barcos para nos avisar sobre eventuais particularidades do trajeto. Coisas do tipo: "vai por aqui", "evite aquela pedra ali", "cuidado que ali é muito raso", etc. Os Bombeiros se sentiram mais suportados com isso. Também disporíamos de duas enfermeiras a bordo, para qualquer emergência.

Acertamos nossa largada para as seis e meia, já sabendo que poderia acontecer de atrasar um pouco e largarmos às sete. Não haveria problema, pois o dia seguinte seria o menor dos desafios: apenas 33 quilômetros.
Mas a confusão estava armada e as rixas afloradas naquela noite se refletiriam no dia seguinte.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Cap.15 - Uma nova equipe nadando

Nos momentos em que nos preparávamos para esta travessia, trocávamos inúmeros emails para combinar os detalhes da organização, trocar experiências, discutir temas - alguns sem consenso, mas democracia é isso - enfim, combinar tudo o que era necessário com os recursos que nos eram acessíveis.
Os emails do titio Ed para o Alessandro vinham endereçados como "Alexandre Massaini". No começo eu não entendi direito - pensava que poderia haver outro parente do Alê na jogada, mas conferi o email e vi que era só um probleminha de confusão de nomes. Não deu outra: a partir daquele momento eu passei a chamá-lo de Alexandre - e assim ficou.
Já de minha parte várias vezes eu me referi ao amigo do Alê, que se chama Eugênio, de Eliseu. Era Eliseu pra cá, Eliseu pra lá e o "Alexandre", com seu jeito mineirinho, só deixava a coisa rolar. Até que, um belo dia, ele me corrigiu em alto e bom tom, mas aí já era tarde. O Eugênio já havia virado Eliseu!
Já em Alagoas, não vou me lembrar em qual cidade, o "Eliseu" se dirigiu a mim, chamando-me de Lourival. Risadas e comoção geral do grupo - eu fui rebatizado naquele momento. O "Alexandre" não perdoava uma e me chamava sempre de Lourival.
O titio Ed foi, num deslize do "Eliseu", chamado de Raimundo e assim ficou.
Bom, aí só faltava o Fábio que, rapidamente foi chamado de Flavio - ou por engano do "Eliseu" ou por que ele era o único sem apelido no grupo. Ou será que foi outro nome? Já é difícil de lembrar de tantas variações!
Já o Rodrigo, também conhecido como Tarzan do Cangaço, foi assim chamado desde o primeiro dia.
Resumindo, começaram a travessia nadando o Edmundo, o Alessandro, o Fabio, o Percival e o Rodrigo, com o Eugênio no apoio. Terminaram a travessia o Raimundo, o Alexandre, o Flavio, o Lourival e o Tarzan, com o Eliseu no apoio.
Ou seja, quem começou não terminou e ainda alguns oportunistas entraram no meio da prova. Como pode?
Acho que temos que desclassificar todo o grupo!

sábado, 3 de novembro de 2012

Cap.14 - Fato marcante em Traipu

Alguns fatos curiosos aconteceram após a nossa chegada em Traipu que são dignos de menção. Gostaria de aproveitar para narrar este episódio, fato inédito ao longo de meus 49 anos (na data da travessia):
Ao chegar e sair da água no meio da multidão - gente muito simples e humilde - eu caminhava apertado no meio deles cumprimentando a todos ainda sem saber direito para onde estavam me levando. Outros me paravam para tirar fotos. Era muita gente por metro quadrado, acreditem!
Foi quando um senhor muito simples se achegou de mim, estendeu a mão em minha direção como que para me cumprimentar. Como eu estava retribuindo o cumprimento a todos, assim o fiz também para aquele senhor de pele ressecada pelo sol, moreno e já de cabelos brancos. Ele apertou firme a minha mão e, em seguida colocou na minha mão uma nota de cem reais bem amassada - daquelas verdinhas - e disse que era para mim.
Obviamente eu não entendi a razão e perguntei-lhe do que se tratava. Ele respondeu, numa linguagem muito mais simples e regional do que eu sou capaz de reproduzir aqui, algo como:
- Isso é um presente para você. Um reconhecimento pelo que fez. Pode ficar.
Aquilo me pegou de surpresa, pois a pobreza da região é muito grande - Traipu é uma das cidades mais pobres do estado de Alagoas, senão a mais pobre - e eu imaginei o que cem reais poderia significar para aquele senhor. E ele me oferecia de coração, eu podia sentir isso em sua expressão.
Gentilmente (tão gentil quanto se pode ser após 12 horas apanhando da água) eu agradeci e lhe devolvi o dinheiro e disse-lhe que o usasse para outras benfeitorias e que eu não poderia aceitá-lo. E segui andando.
Aquela imagem foi instantânea. Acredito que todo esse quadro se passou em míseros segundos, mas marcaram em profundidade a minha alma.
Prova de que há nobres valores humanos por todos os lugares - nós é que nem sempre conseguimos percebê-los.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Cap.13 - Desafio gigantesco - parte II

O tempo foi passando, eu seguia lutando contra as ondas e lentamente os fatos passaram a fazer sentido para mim. Primeiramente soube dos mantimentos - o Foschini e nosso companheiro Eugênio estavam no barco sem ter o que comer. Pelo que entendi mais tarde, eles "filaram uma boia" do piloto, mas não era suficiente. Não devia estar fácil para eles ali também. E a cidade de Traipu que não chegava nunca!
Num determinado momento eu, já ligeiramente cansado e estressado, perguntei pro Foschini:
- Afinal, falta quanto?
Ele me respondeu:
- Tá vendo aquela igrejinha lá naquela margem?
- Tô - eu menti de volta. Eu não enxergava mais muita coisa àquela altura do campeonato.
- Ali o rio vira para a esquerda. a cidade é logo depois da curva.
Como se eu não conhecesse essa velha história de barqueiros que dizem que seu objetivo está logo depois da próxima curva, eu insisti na pergunta:
- Quantos quilômetros depois da curva?
- Seis - o Foschini chutou. Ele não sabia, mas como eu insisti, ele tinha que me passar alguma informação que eu considerasse crível. O pior foi que havia um rapaz sentado no teto do barco que confirmou aquela versão e eu passei a nadar orientado por aqueles números.
Já eram cerca de 15 ou 16 horas quando soube que meus colegas que vinham mais atrás escoltados pelos Bombeiros haviam parado. Não sei ao certo, mas eles devem ter nadado uns 35 a 40 quilômetros até aquele momento. Mais tarde compreendi o que aconteceu: os Bombeiros corriam o risco de ficar sem combustível, pois o tanque extra estava sendo transportado no nosso barco, que se desgarrou sem avisá-los. Então eles se viram forçados a tirar os três nadadores da água para que o combustível restante fosse suficiente para alcançar o nosso barco, mais à frente. A história que eu ouvi ao final do dia e que faz um certo sentido é que não haveria tempo para completar a prova durante o dia, então a perda não fora assim tão grande. Mas conhecendo um nadador de longa, aposto como nenhum dos três se conformou com o fato. São três heróis, que não fugiram ao compromisso e nadaram o quanto lhes foi permitido. Sinto orgulho de sua dedicação e seu empenho!
Logo, o barco dos bombeiros se aproximou, se abasteceu com a gasolina provida do nosso barco e eles passaram a me prestar todo o apoio necessário. Como eu era o único na água, não havia necessidade do segundo barco estar logo ali, ao meu lado. Então, o barco da prefeitura foi dispensado de continuar me acompanhando e navegou até próximo de nosso ponto de chegada, levando consigo o Foschini, o Alessandro e o Tarzan. O Fabio ficou junto com os bombeiros para me dar uma força nesta fase final, que é tão importante. Aos poucos ele foi me explicando - a cada parada de alimentação - o que havia se passado e por que eles estavam ali.
Com a presença dos Bombeiros e seu fabuloso GPS, foi possível dizer com precisão a distância faltante e eliminar os achismos anteriores. Lembro-me de alguns relatos na faixa dos 13 km que (muito) lentamente iam se reduzindo até a cidade. Após a famigerada curva, ainda tínhamos 8 km para nadar. Até que o chute do Foschini não tinha sido assim tão fora da realidade. Mas as impiedosas ondas continuavam altas e fortes. Eu já não sentia mais aquele bom rendimento das primeiras horas - estava esgotado e absolutamente centrado na ideia de chegar.
Os Bombeiros não saíam do meu lado - aquilo não ajudava fisicamente, mas representava um apoio psicológico importantíssimo para uma mente esgotada. Aquilo me lembrou de minhas chegadas na 14 Bis, onde temos a impressão que um conselho a três quilômetros do final vale mais do que um em início de prova.
Quando faltavam uns 1500 metros para eu chegar, o Foschini, o Alessandro e o Tarzan pularam na água de seu barco, que estava a cerca de 600 metros da chegada. O Fabio continuou no barco dos bombeiros, viu aquilo e não gostou.
- Eles vão chegar na sua frente, sem ter nadado o trajeto todo. Isso não pode! - dizia ele, além de outras expresssões de desagrado com esta situação que escutei dele naqueles metros finais.
Eu não quero tirar-lhe nem dar-lhe razão - na verdade eu não tinha condição de pensar em nada mais naquele momento senão chegar. Tanto que pouco reagi aos comentários e pouco me importava o que estava se passando neste quesito.
Os Bombeiros me acompanharam até um ponto no rio exatamente frontal a uma pequena baía onde uma multidão se amontoava à beiro do rio para nos receber. Dali em diante era comigo. Deviam faltar uns quatrocentos metros apenas - impossível dar alguma coisa errada.
Pois deu. Devido às fortes ondas contrárias e à minha baixa visibilidade, eu fui levado para cima do rio e, quando percebi, a cidade não estava mais à minha frente. Senti-me um tanto perdido. Os Bombeiros foram pacientemente até onde eu estava para me reorientar, com um ar de riso nos lábios. Acho que era difícil de entender como foi que eu consegui me perder estando tão perto. Novamente mais uns quinhentos metrinhos - eu estava quase lá!
Havia umas seiscentas pessoas - estimo - mas alguns falam em mil - à beira d'água olhando para mim. Eu parecia um alienígena vindo de outro planeta sendo seguido por aqueles olhos incrédulos. Mais à direita - na parte mais baixa do rio - havia uma rampa de acesso onde estavam as autoridades locais - a prefeita, alguns secretários e assessores. Devido ao estado em que me encontrava, eu simplesmente não os vi - juro, não fiz por mal. Ao buscar o ponto de saída da água, mirei em algumas pedras grandes e para lá fui nadando. O rio não era raso ali, por ser uma região onde atracavam os barcos, mas eu finalmente apoiei meus braços naquele matacão umedecido e o escalei com um misto de cansaço e realização. A população estava ali, a meio metro de mim, e não sabia como me ajudar. Foi quando eu comecei a me embrenhar por aquele povo, feliz de tocar o chão novamente com meus pés, sob os aplausos e os cumprimentos de uma população simples e sofrida. Aquilo a gente via estampado em suas faces enrugadas e queimadas do sol. Muitos me davam a mão, outros me abraçavam, outros tiravam fotos, todos aplaudiam. Fui paparicado demais! Bela recompensa. Inesquecível.

A população compareceu em massa à nossa chegada em Traipu. Foi o evento do ano!

Rapidamente um dos assessores surgiu no meio da multidão e me conduziu até onde estavam as autoridades locais, com quem dialoguei por alguns instantes.
Poucos minutos mais tarde, chegaram nadando o Alessandro, o Foschini e o Tarzan. Eles chegaram pela rampa correta, onde eu agora me encontrava. Foram ovacionados também pela população local. O Fabio não quis chegar nadando, por sua opção, que eu entendo e respeito.
Eram 17:45h. Eu havia nadado quase doze horas e completado o percurso neste duro segundo dia de prova. Com isso, a moral natatória de nosso projeto estava mantida. Para lutar por uma causa - no caso, a preservação do Rio São Francisco - o fato de atingir seus objetivos confere ao evento uma tonalidade especial. Aliás, todos estavam de parabéns - o Alessandro, Fábio e o surpreendente Tarzan do Cangaço foram valentes e destemidos - nadando seus trajetos naquele dia com muito foco e dedicação. Até mesmo o Foschini, em seus cinco quilômetros nadados naquele dia, colaborou para o sucesso do projeto.
Fatos curiosos - alguns engrandecedores, outros nem tanto - se sucederam após a chegada em Traipu - que passo a descrever sucintamente nos próximos capítulos. 
Conto com sua prazeirosa companhia nos textos a seguir!

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Cap.12 - Desafio gigantesco - parte I

O dia começou a clarear por volta das cinco horas.
A equipe já estava um tanto desgastada. Afinal, atrasamos a largada - e não foi pouco - quando poderíamos dormir um pouco mais, algo importante para o que nos esperava. Seriam quase duas horas e meia a mais de sono que fariam uma grande diferença no rendimento e bem estar dos atletas. Lembro-me de conversar com o Foschini a sós sobre isso, mas não chegamos ao consenso sobre os porquês daquilo ter acontecido.
O barco finalmente se aproximou da prainha e estendeu sua rampa de entrada. Os Bombeiros e a Marinha ainda preparavam seus equipamentos para entrar na água. Do nosso lado, os últimos preparativos: protetor solar, vaselina nas articulações, mochilas nos barcos corretos, mantimentos, remédios, combustível e tudo o mais.
Antes de entrar na água, combinamos que iríamos nadar todos juntos e informamos a todo o pessoal de apoio. No dia anterior fora difícil acompanhar aos nadadores, que estavam bem afastados uns dos outros. Um barco da prefeitura e o barco dos bombeiros nos acompanhariam. O primeiro era bem grande - eu arrisco dizer cerca de 60 pés ou mais - e pouco apropriado para fornecer o suporte que o nadador precisava. Era difícil de manobrar e não conseguiria acompanhar o nadador de perto. Mas fora cedido com tanta boa vontade pelo pessoal local que estávamos muito satisfeitos - fazia parte da dificuldade da prova fazer o melhor com o que tínhamos.
A seguir, uma visão interna de um barco similar, onde confabulavam o Fabio e o Tarzan.



Já o barco dos bombeiros era pequeno e sem cobertura nenhuma - haja protetor solar! Veja a seguir:


Entramos na água às seis da manhã. Os bombeiros ainda não estavam prontos mas em poucos minutos nos alcançariam. Saímos com o barco e, a poucos metros da margem - fora do mangue e de uma ilha próxima - mergulhamos e iniciamos nosso nado.
Após pouco menos de uma hora de prova, tivemos nossa primeira baixa: o Foschini sentiu muito frio e decidiu subir no barco até que o sol tivesse maior incidência para poder voltar. Foi realmente uma pena, pois um nadador sempre transmite mais confiança ao outro quando está ali, empenhado na mesma luta com você. Mas sua sensibilidade ao frio era-me bem conhecida - ele já havia desistido na Travessia 14 Bis de 2008, o famoso ano do ciclone extratropical, por problemas de temperatura. No Velho Chico, eu estimava a temperatura da água em 24 a 25 graus. Já os demais nadadores achavam que estava cerca de 22 apenas. Nunca tiramos a prova dos nove e não saberemos ao certo - mas ele sentiu e saiu.
O ritmo de prova era bem lento. Após uma hora e meia, víamos que não chegaríamos a lugar algum naquela velocidade. Era preciso mudar a tática. Foi o próprio Foschini - já no barco - quem sugeriu e eu acatei:
- Percival, neste ritmo não vamos chegar. É melhor você ir nadando à frente dos demais.
Ouvir aquilo era como música para meus ouvidos. Assim, passei a imprimir um ritmo mais forte e fomos nos distanciando dos demais. O barco da prefeitura nos acompanhava - com o Foschini dentro dele - enquanto os Bombeiros escoltavam o Alessandro, o Fábio e o Tarzan.
O que eu desconhecia naquele momento - até por que o nadador não tem que se preocupar com essas coisas - eram quatro fatos básicos:
1. o Foschini não combinou com os Bombeiros sobre esta nova tática
2. o combustível adicional para o barco dos Bombeiros estava no barco da prefeitura - o nosso
3. os mantimentos da tripulação do barco da prefeitura estavam no barco dos Bombeiros
4. os rádios de comunicação, assim com os Bombeiros, estavam todos no barco dos Bombeiros
Já deu para imaginar o que aconteceu no restante do dia...

Seguia nadando ritmado, rezando para o vento não entrar forte. Fazia o possível para render o máximo antes da inevitável chegada dos maretões. Acredito que tenha nadado por cerca de três horas antes de sentir as primeiras ondulações na superfície da água.
De tempos em tempos - a cada meia hora aproximadamente - uma pausa para eu tomar minha maltodextrina e a pergunta sobre os demais.
- Eles estão vindo mais lá atrás. - respondia o Foschini, sequinho no aconchego do barco.
A prova caminhava bem, mas era bastante longa. Passado um pouco das nove horas da manhã, as ondas começaram. Como no dia anterior, elas começam pequenas e inofensivas e tornam-se grandes e inevitáveis. As margens do rio naquela região eram mais descobertas e o vento começou a entrar forte. Não adiantava buscar refúgio na margem alagoana ou sergipana - as ondas começaram a castigar.
O Foschini logo se apercebeu de minha situação e fazia recomendações para eu nadar colado ao paredão do lado alagoano. Eu não sentia segurança de me aproximar demais daqueles maciços, pois me sentia facilmente manipulado pelas ondas e poderia bater em alguma protuberância próxima. Não adiantava muito.
Solicitei ao Foschini que o barco ficasse ao meu lado, para me proteger do vento, de forma análoga ao que fazemos no Canal da Mancha. Ele me disse que o barco não permitia aquele nível de manobrabilidade e havia o risco de eles me atropelarem, se estivessem mais próximos.
Apanhei um bocado daquelas ondas. Estas não apenas atrapalham a coordenação dos movimentos forçando suas articulações, elas também fazem o nadador beber água inesperadamente em seu ciclo de respiração lateral. Comecei a ficar enjoado com a água ingerida. A cada parada para alimentação eu não conseguia ingerir malto o suficiente. Eu sabia que isso não era bom e que, se a energia acabasse, acabaria o meu sonho.
Após muito nadar, recebo a notícia de que estávamos a cerca de 40 a 45% do percurso. Meu nado não rendia mais o mesmo tanto do início - as ondas atrapalhavam bastante e meus ombros começaram a mostrar sinais de cansaço.
Numa parada, o Foschini me falou:
- Tá vendo aquele povoadinho lá longe? - estava tão longe que minha visão cansada e já embaçada mal conseguia discernir - Lá é a metade do caminho - disse ele.
Estava realmente difícil. Na próxima parada, já próximo da metade da prova, pedi ao Foschini:
- Me passa as nadadeiras. Eu vou usá-las.
Eu não queria, mas eu achei o melhor a fazer naquelas condições. Afinal, todo nadador gosta de cumprir o desafio sem ajuda de equipamentos. Mas a imprevisibilidade das condições locais pegou muito forte.
Daquele ponto em diante, senti-me reanimado pois conseguia penetrar as ondas com mais facilidade. Meu objetivo agora era não desgastar demais as pernas para poder suportar até o final. Em treinos eu nunca havia nadado exaustivamente de nadadeiras - somente alguns pequenos trechos. Aquela era a hora da verdade!
Deixamos o povoado para trás e segui nadando. Quando vesti as nadadeiras, já não havia sinais visuais de nossos três amigos nem dos Bombeiros - eles haviam ficado muito além das curvas do rio. Eles também estavam sentindo as dificuldades do trajeto, com toda a certeza. A distância entre nós certamente aumentaria daquele ponto em diante.
As nadadeiras fizeram uma boa diferença, mas eu comecei a sentir um cansaço maior e um incômodo da borracha que machucava meu pé, deixando-o em carne viva na região do tornozelo. Não era muita coisa, mas já começava a incomodar.
A certa altura, buscando soluções para estes pequenos problemas que se apresentam - e que podem te tirar da prova - resolvi parar alguns segundos e trocar os pés das nadadeiras entre si: o esquerdo foi pro direito e vice-versa. Aquilo deu um maior nível de conforto e me permitiu seguir nadando.
Continuei apanhando e, involuntariamente, bebendo água ao respirar lateralmente. Ainda faltava muito quando, pela primeira vez em minha vida pensei em desistir. O sentimento de "entregar os pontos" estava lá - escondido em algum lugar profundo em minha alma - e as crescentes dificuldades da prova fizeram-no aflorar e, com o passar do tempo, ele foi ganhando força e espaço em minha mente.
Aquela sensação era muito ruim. Eu queria evitá-la, mas não pude. Levantei a cabeça e disse para mim mesmo:
- Eu nunca desisti antes. Que mal faz eu desistir uma vez? Tudo bem, depois eu conto pros outros e a gente se entende. Vou desistir!
Mas nessa hora, olho em volta e percebo que o barco não estava por perto.
- Porra, meu! - pensei - justo agora que eu quero desistir vocês estão assim longe? OK, eu vou nadando até lá e então eu desisto!
O barco havia se adiantado para me indicar o caminho. Naquela região havia uma croa no meio do rio - uma pequena ilha bem rasteira coberta por uma vegetação tênue - que o nadador não enxerga direito e que os barcos têm de evitar a todo o custo, para não encalharem. Ele se encontrava algumas centenas de metros à frente bem à esquerda e eu corrigi meu rumo para encontrá-lo. Afinal, eu ia desistir tão logo os encontrasse!
Não sei se por força da natureza, se havia alguma relação com a croa, mas surgiram no leito do rio algumas algas enormes - chamadas de rabo-de-raposa - que se inclinavam na direção do fluxo do rio e ficavam oscilando para cima e para baixo num movimento como que acenando para mim. Em alguns pontos era tão densa e fechada que mal se conseguia enxergar o fundo. Nessas ocasiões eu ficava pensando:
- Que tipo de peixe (ou outro animal) pode se esconder aí debaixo?
Aquilo me provocou um duplo sentimento: de admiração pela beleza da natureza e de receio pelo que ela poderia estar escondendo de mim.
- Mais uma razão para eu desistir - pensei comigo mesmo. Cadê o barco? Cadê?

Uma pequena amostra das algas que se estendiam por centenas de metros,
talvez quilômetros do rio. Sinistras, não?

As algas chegaram a se avolumar sob meu corpo a tal ponto que não sobrava mais do que uns dez centímetros de água para minha braçada. Eu evitava a todo o custo enfiar as mãos e os braços no meio delas. Até que passei a ondular submerso sem braçadas bem próximo à superfície. A força das nadadeiras somada à correnteza do rio me permitiram percorrer aquela região ondulando - era um nado borboleta sem os braços e com os dois olhos bem abertos e o outro fechado, se é que me entendem.
Estranhamente aquele novo estilo me fez bem. Como eu mantinha-me com a cabeça submersa sem a respiração lateral do crawl, eu passei a engolir menos água. Ondulava oito vezes e respirava. Às vezes mais. Mas o fato de não estar mais engolindo involuntariamente a água me trouxe uma maior sensação de conforto. A região dominada pelas algas era menos suceptível às ondas - acho que por amortecerem reflexões de água no leito do rio ou algum outro fenômeno parecido.
O resultado? Eu não queria mais desistir - aquele sentimento ruim havia se dissipado. Ao chegar ao barco, em mais uma parada para alimentação, trocamos algumas ideias: eu comentei sobre as algas e o Foschini falou-me da croa e por que era importante desviar dela por ali, a bombordo - por que a estibordo, o rio era raso e havia risco de encalhe da embarcação. Em momento algum eu externei minha quase-desistência. Falar pra quê? Aquele sentimento não existia mais!
Esse dia foi tão longo que sinto-me na obrigação de dar uma pausa para os leitores descansarem também, até o próximo texto.
Até lá, então.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cap. 11 - Uma conturbada madrugada

Segundo dia de nossa travessia. Estávamos em Pão de Açúcar e rumaríamos até a próxima cidade - Traipu.
Por volta das duas da manhã o Foschini veio acordar a todos - ele era bom nisso, pois estava acostumado a levantar muito cedo em sua casa - além de ter ido dormir mais cedo na noite anterior. Acordar naquela hora parecia absolutamente desumano para nós - o Fábio e eu - que havíamos dormido apenas quatro horas. Chiamos um bocado até conseguirmos levantar.
O pessoal se encontrou na cozinha, onde rapidamente tomamos um café da manhã - preparado por nossa anfitriã com toda a boa vontade - e fomos carregar os carros que nos levariam até a margem do rio. Tratava-se de equipamentos eletrônicos, o famigerado gelo - sim, ele chegou a tempo! - mantimentos básicos para as equipes de apoio - por terra e pela água - além da lancha dos Bombeiros e do jet-ski da Marinha, guardados longe de nossa pousada.
Pouco antes de nossa saída, o Foschini se aproximou dos demais nadadores e disse:
- Olha, o dia de hoje vai ser revezamento. A distância é muito grande e de outro jeito não vai dar.
Ele havia conversado com o pessoal da região na noite anterior que o havia desaconselhado a nadar todo o trajeto. Eles diziam que seria inimaginável que um ser humano nadasse tudo aquilo e a distância certamente era muito maior que os 57 km que eu afirmava separar as duas cidades.
Em minha modesta opinião, há certas pessoas em certos momentos que não devem ser ouvidas. Mas a distorção não está localizada unicamente naquele que fala. Se o ouvinte partilhar de convicções parecidas, ele absorve a mensagem em todos os seus detalhes e ainda a amplifica. É sábia a frase de Nietsche, que diz:  "As convicções são maiores inimigas da verdade do que as mentiras."
Como eu já conhecia a tendência do Foschini de aumentar todas as distâncias nadadas, ele acreditou no dito cujo, que falava em mais de sessenta e tralalá quilômetros, e trouxe esta proposta - ao meu ver, indecente - para o grupo, que a rejeitou veementemente por unanimidade dos ouvintes. Nós estávamos ali para nadar - mesmo que falhássemos - mas queríamos nadar. Havíamos nos preparado arduamente para tal e não seria uma opinião pessoal - que, apesar bem intencionada, era imprecisa - que nos desviaria de nosso objetivo.
Na calçada do lado de fora da pousada, acheguei-me ao nosso colega bombeiro, com seu sofisticado GPS na mão e perguntei-lhe sobre a real distância até Traipu. Ele me respondeu em poucos instantes que a distância real não variava mais de cem ou duzentos metros de minha previsão inicial - mais uma confirmação de que havíamos planejado apropriadamente o trajeto. Era um problema a menos. Só nos restava o segundo "probleminha": nadar tudo aquilo, o que não deixava de ser uma tarefa hercúlea.

Chegamos à beira do rio às três e meia. A madrugada estava um tanto friazinha com a umidade do local e a ausência absoluta do rei sol. A iluminação era mantida apenas por uma lâmpada de um poste que insistia em apagar ciclicamente, deixando-nos no maior breu de quando em quando. O leito do rio estava imerso na mais profunda escuridão. Não se via luz à distância na margem sergipana, exceto por alguns pontos aqui e acolá.
Aguardávamos o barco de acompanhamento, cedido gentilmente pela prefeitura de Pão de Açúcar. Enquanto ele não aparecia, os Bombeiros e a Marinha chegaram ao local. Como não havia sinal de barco de apoio, nem os Bombeiros nem tampouco a Marinha se animaram em colocar seu barco e jet-ski na água.
Muitos questionamentos começaram a surgir. Uma tese dominante era a de que o barco poderia sair de outro ponto, mais apropriado para embarcações, que ficava cerca de quinhentos metros (ou mais) rio abaixo e que poderia estar nos esperando por lá. Já eram cinco horas da manhã, quando os Bombeiros rumaram para lá, rebocando seu barco - com o Foschini sentado no reboque - enquanto os demais nadadores pegaram uma carona na pickup da Marinha.

Começamos a ouvir o ruído de um motor de barco e a identificar luzes tênues à distância que indicavam que o barco estaria chegando no exato momento em que nos deslocávamos. Um apoio da prefeitura ficou para orientar o barco para nos pegar na outra prainha.
De lá partimos para a jornada natatória mais longa de minha vida. Tão longa que deixarei sua descrição em detalhes para minha próxima postagem.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Cap.10 - A primeira noite, em Pão de Açúcar

Ao chegarmos em Pão de Açúcar, o pessoal que havia vindo por terra veio ajudar no transporte e guarda dos equipamentos. Estamos falando aqui dos Bombeiros e do pessoal da Marinha.
Os primeiros estavam divididos em dois grupos: um nos acompanhava em água e outro seguia de caminhonete por terra para, no final do dia, tirar o barco da água, colocá-lo na carreta e guardá-lo.
Nossos incansáveis - mas já cansados - amigos Bombeiros:
indispensáveis para o sucesso de nosso projeto.

Já a Marinha entrava de Jet Ski na água conosco, nos acompanhava pelos primeiros quilômetros e depois voltava à origem, tirava o jet-ski da água, colocava-o na carreta e ia de caminhonete até a próxima cidade. Pouco antes de chegarmos, eles entravam na água novamente e nos acompanhavam nos minutos finais de cada etapa. Eles não estavam equipados para nos acompanhar durante todo o trajeto - o jet-ski não tinha a autonomia necessária - e a proteção fornecida pelos bomeiros já seria o suficiente.

Nossos amigos da Marinha contribuíram - e muito - para o nosso sucesso!

A presença de ambas as entidades agregou uma visão diferenciada no decorrer da prova e nos assegurou um ambiente livre de imprevistos - mesmo que, para tal, eles tivessem que oferecer uma visão diferente daquela dos nadadores, sempre buscando garantir a nossa segurança.

Antes de nos retiramos das margens do rio - permanecemos ali um longo tempo até a chegada dos demais nadadores (cerca de 20 a 30 minutos) e até os equipamentos serem retirados d'água - testemunhei o Foschini fazendo os últimos arranjos com o pessoal da prefeitura para que o barco da cidade - que nos acompanharia no segundo dia - estivesse ali, naquele ponto, às cinco da manhã. De lá fomos transferidos em carros dos locais para uma pousada na cidade. Confesso que não me recordo o nome da pousada, nem de sua egrégia proprietária (vou chamá-la aqui de sra. X), que tão bem nos recebeu - festiva, alegre, contadora de piadas e um tanto "demasiadamente espontânea" em suas palavras também.
Eu fiquei num quarto logo na entrada do hotel, junto com o Fabio. O Foschini e o Alessandro subiram para o primeiro andar e lá se alojaram. No meio do caminho havia a cozinha, onde trabalhava com afinco a sra. X. Afinal, naquela noite, ela tinha que alimentar cerca de doze pessoas - onde algumas ali comiam bem.
Eu não sei como o Foschini é magro daquele jeito. Vocês têm que ver como aquele ser humano come! Acho que é por isso que a (Santa) Mara cozinha tão bem - ou seria o contrário? Não sei dizer ao certo. 
Na verdade, nenhum dos nadadores ali comia pouco. Já os bombeiros e os oficiais da Marinha pareciam absolutamente normais, para sorte da Sra. X.
Assim, jantamos tão logo a comida ficou pronta. Precisávamos dormir logo para o dia seguinte, que seria o mais difícil de todos. Na cozinha não havia lugar para todos sentarem. A Sra. X pôs as panelas, pratos e talheres na mesa e se retirou. Eu tentei sentar-me junto à mesa e, ao puxar a cadeira, seu assento caiu no chão - estava desparafusado - e as baratinhas que se escondiam em sua estrutura tubular deram o ar da graça e fugiram para debaixo da pia.
Enquanto todos comiam eu tentava persegui-las movendo os objetos sob a pia, somente para perceber que eu havia desalojado outras baratinhas de suas casas. Uma delas estava agora sobre a pia, outras sob a mesa e sob a pia também. Desisti. O melhor a fazer era comer (aaargh!) e logo sair dali.
Naquela hora eu lembrei do Niltão e pensei:
- Esse cara se livrou de uma boa aqui. Imagine se ele vem e trás a (santa) esposa junto - nossa, que tragédia teria sido!
Antes de subir para dormir, o Foschini, que havia se aconselhado com o então secretário de Traipu (a próxima cidade vizinha), resolveu mudar os planos e comunicou:
- Amanhã temos que sair às três e meia da manhã ou não vamos conseguir chegar em Traipu (a terceira cidade em nosso trajeto).
Nós, nadadores, ouvimos com muito pesar aquela notícia pois ela implicava em levantarmos às duas ou duas e meia da manhã e também teríamos de nos preparar para o nado noturno. Nadar à noite implica em preparar os sinalizadores químicos luminosos para que possamos prendê-los na touca/ nos óculos de natação para sermos rastreados com facilidade na escuridão.
Percebemos que nossos amigos Bombeiros e Marinha ouviram e não discutiram, mas acharam o horário de saída muito pouco apropriado, com certeza.
O Foschini e o Alessandro simplesmente sumiram de vista e foram dormir. Ficamos eu e o Fabio preparando a alimentação do dia seguinte. Aquilo dava um trabalho danado. Eu preparava maltodextrina em dois ou três sabores diferentes, acondicionava em garrafas e colocava no isopor/ mala  térmica que, pela manhã, iria receber o gelo. Já o Fabio tinha umas duzentas fórmulas diferentes que sua nutricionista lhe recomendara e que tinham de ser preparadas na noite anterior. Aquilo nos consumia mais de hora para ficar pronto. Pelo menos as baratas deram um tempo naquela hora!
Foi quando chegou o representante da prefeitura e nos chamou para uma homenagem na pracinha da cidade. Afinal, aquele ainda era o dia de São Francisco e a cidade iria aproveitar de nossa passagem para fazer um evento na pracinha central da cidade, chamar a população e prestar uma homenagem aos nadadores.
Uma homenagem naquele momento representava algumas horas a menos de sono. O que fazer?
O Foschini era o contato oficial com as prefeituras - afinal, ele era da região e havia contatado o pessoal da cidade pessoalmente. Fui chamá-lo para comparecer - ele nem mesmo se dignou a levantar da cama - disse que não podia ir, pois tinha que dormir.
Eu fiquei muito sem jeito de dizer não àquela população que nos acolheu - e resolvi ir até lá junto com o Fabio e o Tarzan do Cangaço. Os demais ficaram dormindo.
De fato, no coreto da pracinha ouvimos os discursos das autoridades presentes, foi-me dada a oportunidade de falar algumas breves palavras - o que fiz com muita comedição. Também nos foram oferecidas duas lembranças da cidade: uma pequena estátua de gesso com o símbolo da cidade - o Cristo Redentor sobre o Pão de Açúcar (mostrado no post anterior) - e uma pequena escultura em madeira, representando uma canoa chamada de Igaci que, pelo que nos contou o prefeito, era responsável por várias vitórias em competições locais.
Saindo de lá,  esperávamos ir dormir logo que possível. Mas, como em toda história  tem sempre um "mas", o prefeito da cidade - muito simpático e prestativo conosco - insistiu em seu discurso que fôssemos visitar o museu da cidade, organizado pelo nosso já amigo e secretário de Traipu. Novamente fiquei sem jeito de dizer não e, desta vez sozinho, fui acompanhar meu anfitrião Jackson (simpaticíssimo por sinal - vejam na foto abaixo) até seu museu, onde ele me contou várias histórias da região.

O Jackson, muito gentil, me apresentou o museu da cidade em Pão de Açúcar

Após essa breve visita, voltei ao hotel e lá encontrei o Fabio ainda preparando sua alimentação. Eu ainda tinha que encontrar uma maneira de manter o nadador sinalizado no escuro - isto é, com o sinalizador luminoso próximo à cabeça e bem visível. Para mim, a segurança vem em primeiro lugar. Eu pensei em usar alguns amarrilhos para amarrá-los, mas descobri que aquela região é tão desprovida dessas modernidades que eles desconheciam completamente o que era um amarrilho.
Então eu pedi um pão de forma - dali eu tiraria o amarrilho - e recebi a resposta:
- Aqui não tem isso não.
O que fazer? Como prender os sinalizadores? Imaginei usar um barbante, mas a dona da pensão não tinha. Perdi mais de hora para conseguir improvisar com um pedaço pequeno de arame que eu dispunha para os cinco sinalizadores que iríamos usar. Meu objetivo era acabar logo aquilo e, antes de ser comido pelas baratas, voltar ao meu quarto para poder dormir - o mais importante naquela hora, pois o desafio no dia seguinte era de 57 km, o mais pesado de toda a nossa empreitada.
Mas aquilo não era tudo. Eu ainda tinha que carregar as baterias dos comunicadores, da lanterna e tentar uma comunicação via internet - em vão, pois não havia sinal por ali.
Eu dormi apenas quatro horas, graças a essas atividades extras - as homenagens, a visita ao museu, a preparação da malto e dos sinalizadores, etc. O Fabio não foi muito diferente. Já o Foschini e o Alessandro, que se trancaram em seus quartos logo na chegada, tiveram algumas horas a mais para dormir.
O dia seguinte prometia fortes emoções...

domingo, 28 de outubro de 2012

Cap.9 - A travessia "on the rocks"

Tanto no dia de nossa largada de Piranhas como no segundo dia de nossa travessia, saindo de Pão de Açúcar, conseguimos receber alguns pacotes de gelo das prefeituras locais para manutenção de nossa alimentação numa temperatura agradável no meio daquele calor infernal. Mas obtê-lo demandava um esforço de convencimento nada desprezível junto às prefeituras. Voltamos à questão do MODELO de organização, que já foi tratado anteriormente e dispensa maiores comentários.
O gelo havia sido motivo de discussão forte como item de planejamento de nossos suprimentos e não houve maneira de chegarmos ao consenso. Quando eu perguntava pro Foschini se as prefeituras aceitariam nos fornecer gelo, ele respondia o seu famoso:
- Na hora a gente vê.
Talvez eu estivesse preocupado demais com o fato, mas sem gelo, o sucesso desta travessia poderia ser seriamente comprometido, por impossibilitar a ingestão de malto numa temperatura adequada. Num sentido ele tinha razão: algumas das cidades no trajeto dependiam da pesca - logo, havia gelo em abundância. Meu pensamento era um pouco diferente: será que aquele gelo abundante estaria disponível para nossas largadas NA HORA CERTA? O plano era largar de Pão de Açúcar às três e meia da manhã - ele estaria lá?
As correntes de pensamento eram duas:
Eu nado provas longas sempre com o apoio de matodextrina - acondicionada em baixa temperatura, para que fique mais agradável de beber. Fui orientado assim por meu nutricionista quando de minha travessia do Canal da Mancha e entendo que trata-se do melhor e mais adequado complemento alimentar (não é o único, obviamente) para provas longas (acredito que não somente eu, mas todo o mundo esportivo de alta performance pensa desta maneira). Pode ser acompanhada por outros quitutes, mas com moderação. O Fábio recebera recomendações similares de sua nutricionista - a base da alimentação também seria a maltodextrina - e incluía requintes de sofisticação no preparo, adicionando complementos diversos e bem planejados às suas garrafinhas. Ele seguia à risca todas as recomendações e gastava um bom tempo em seu preparo - normalmente junto comigo durante a noite. O Alessandro seguia basicamente a mesma linha da malto, sem muita sofisticação.
Já o Foschini tinha sua opinião a respeito da malto. Lembro-me de sua mensagem de otimismo num email endereçado a mim dias antes de nossa prova:
- Espero que essa porra de maltodextrina embrulhe direitinho o seu estômago. Aquilo é uma gororoba... (vou parar os elogios por aqui).
Sua linha de alimentação baseava-se em suspiros feitos pela (Santa) Mara, pêssegos em calda, alguns doces ou biscoitos diversos e, muito ocasionalmente aqui ou acolá - um pouco de malto. Logo, para ele não havia tanta necessidade de gelo.
Um nadador mal alimentado pode incorrer em uma de três situações, quando submetido a esforços prolongados como seria o nosso caso: 1- ele perde força e seu estilo não rende ou 2- ele começa a sentir muito frio devido ao fato de seu corpo não gerar calor suficiente a ponto de sair da água ou 3- ambas as descrições anteriores. Some-se a isso o fato de não conseguirmos dormir o suficiente e a confusão está armada.
Em cada pernoite nas cidades, minha preocupação com a disponibilidade do gelo era constante. Tivemos o gelo que precisávamos em 3 das 4 cidades de pernoite. A cidade que não conseguiu a quantidade solicitada nos arrumou uns punhados de última hora que foram minimamente suficientes para aquele dia - por sorte, o menor trajeto dos quatro dias.
Paradoxalmente, posso afirmar: "Dado o calor reinante na região, sem gelo, aquilo seria uma fria..."


sábado, 27 de outubro de 2012

Cap.8 - Um primeiro dia de fortes emoções

Logo após a largada, já estávamos esperando encontrar as regiões mais turbulentas do rio.
Em poucos minutos, chegamos a Caçamba. Eu estava ligeiramente à frente do grupo e fui o primeiro a entrar e sair da primeira leva de redemoinhos.
Nadei forte, bati muita perna e não deixei os pés afundarem, quando puxados para baixo. É uma sensação forte e desagradável saber que há algo ali embaixo da água que conspira contra você. Trata-se de um inimigo invisível, com força nada desprezível, em direção ao qual você se dirige, sem poder evitá-lo. Mas felizmente a forte emoção se vai rapidamente ao passar pela turbulenta região com a ajuda da correnteza.
Não parei de nadar, apenas reduzi o ritmo. O pior ainda estava por vir - a segunda região, chamada de Mateus - apresenta redemoinhos mais fortes e eu tinha que estar preparado. Os barcos ficaram um pouco para trás para acompanhar os demais nadadores.
De vez em quando eu olhava para trás para tentar identificar como estavam meus companheiros, mas percebi que estavam no meio de suas batalhas.
Como disse o Alessandro, ao final do dia:
- Deus me livre! Se eu tivesse passado uma primeira vez ali para conhecer a região eu não teria voltado nunca mais. É a mesma coisa que nadar dentro de um liquidificador!
A região do Mateus estava se aproximando. O barco dos bombeiros ficou pra trás para ajudar meus colegas, o Carlinhos se aproximou de mim antes de eu entrar no Mateus. Conforme previsto, ali a briga foi mais feia e cansativa, mas consegui passar e parei de nadar logo em seguida, para esperar meus companheiros. Mesmo sem nadar, aquela região, que é rica em corredeiras, lhe propicia uma velocidade de deslocamento bastante agradável.
O pessoal não chegava e comecei a estranhar. Afinal, eu não estava nadando forte neste início de prova - havíamos combinado dessa maneira - somente nos desgarraríamos após estarmos seguros de que todos haviam passado bem por ali. Depois de alguns minutos, o Carlinhos voltou e me contou o que havia acontecido: as dificuldades não foram poucas naquele trecho. O próprio Foschini - nadador experiente como é - ficou circulando num redemoinho que deixou os bombeiros em estado de alerta. Estes me contaram mais tarde que estavam a ponto de pular na água para retirá-lo dali, mas no final o nadador conseguiu se desvencilhar e seguir em frente.
Passado o susto inicial, seguimos nadando. Eu estava um pouco à frente, esperando que o Foschini se juntasse a mim - assim havíamos combinado. Mas, por razões que desconhecia no momento, ele resolveu ficar nadando no grupo de trás por um bom tempo, diferente do combinado entre nós.
Com a ajuda da correnteza, nadei cerca de 8 km na primeira hora. Este resultado era incrível - quase duas vezes minha melhor marca em piscina! Se conseguíssemos manter esse ritmo, terminaríamos o primeiro dia em menos de seis horas, o que, obviamente, era um sonho impossível.
Mas cabeça de engenheiro gosta de fazer contas - isso é inevitável!
O tempo foi passando e a correnteza foi se reduzindo. O rio aos poucos começava a ganhar largura e, assim, a vazão era diluída e passava a nos empurrar cada vez menos. Aos poucos percebia que o Foschini e eu nos alternávamos na ponta da prova. Não havia competição ali - cada um tinha o seu ritmo de prova e isso gerou algumas das diferenças de desempenho - nada além disso.
No meio do caminho ainda passávamos por várias regiões onde se sentiam turbulências parecidas com os redemoinhos recém-vencidos. Eram de menor intensidade, mas como dito pelo Alessandro:
- Cada vez que eu passava por elas, eu tremia todo só de lembrar daquilo. Era muito ruim!
Depois de uns quinze ou vinte quilômetros, travamos contato com aqueles que seriam nossos maiores inimigos em nossa empreitada: os maretões.
Maretões são ondas formadas pelo vento, que sopra sempre do mar para o interior - isto é, sempre contrárias ao nadador - que começam como uma leve tremulação da superfície da água e terminam como ondas de mais de meio metro de altura, que atrapalham - e bastante - os nadadores. Nadar contra ondas desequilibra o nadador e exige do mesmo esforços grandes em suas articulações - em especial dos ombros - o que pode comprometer o sucesso de nosso projeto. Afinal, eu treinei sem vento e sem marolas e agora a realidade era outra. Seria possível completar naquelas condições?
Eu apanhei bastante daquelas ondas. Na verdade, eu era péssimo para nadar em condições assim adversas - já havia tentado aprender antes e não me dava bem. Somente consegui me superar nesta técnica no terceiro dia, como explicarei mais adiante.
Este trecho final foi bastante demandante e cansativo. Cerca de metade dos 45 km foram sob os efeitos dos maretões. Não foi fácil. As ondas nos impediam de ver os colegas na água e isso ajudou a nos distanciar no rio. O Carlinhos ficava um pouco comigo e um pouco com o Foschini. Os bombeiros ficaram o tempo todo com os demais.
Após 6 horas e quarenta minutos, chegamos à cidade de Pão de Açúcar. A cidade leva esse nome por que tem um morro à beira do rio de forma levemente arredondada, que relembra (muito remotamente) o seu irmão carioca de mesmo nome. Para economizar, o pessoal dali resolveu colocar uma estátua do Cristo Redentor (bem menor em tamanho) em cima do Pão de Açúcar mesmo - afinal, eles não tinham um corcovado sobrando na região...

A chegada foi algo quase como um filme de terror. Já cansado, eu buscava me aproximar da margem, onde o barco atracara. No leito do rio, que ali era bem mais raso, se apresentavam algumas formas vegetais muito estranhas em forma e, principalmente em textura. Eram espécies de algas, típicas da região, que se formavam no fundo do rio, cresciam e algumas estouravam, liberando ramificações que insistiam em roçá-lo, gerando uma sensação muito desagradável. Elas ficavam praticamente imóveis, dando a impressão de serem rígidas e firmes, mas eram moles como folhas. Eu não ousava tocá-las, por serem demais repugnantes, mas quanto mais me aproximava da margem, mais elas se adensavam e não me davam espaço para minhas braçadas.
À beira do rio, um representante da prefeitura nos recebeu e uma dúzia de moleques fugidos da escola apareceram para saber o que estava acontecendo. Dali iríamos para a pousada, para descansar. Esperamos a chegada de todos, nos despedimos do Carlinhos com muito pesar, pois ele conhecia muito bem o rio e não nos acompanharia mais daquele ponto em diante. Ele aproveitou a claridade do dia e subiu ligeiro em sua voadeira de volta para Piranhas para dar as boas novas na cidade:
- Eles conseguiram vencer a primeira etapa - todos eles, incluindo ali o Tarzan do Cangaço.
Novas emoções ainda estavam por vir naquela noite!

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Cap.7 - O grande dia. Dia de São Francisco!

Era 4 de outubro de 2011. Dia do padroeiro do Rio e momento mais que apropriado para comemorarmos, na região, os 510 anos do descobrimento do Rio São Francisco. As cidades ribeirinhas celebram intensamente a data, pois o Rio lhes traz boa parte de suas esperanças: na pesca, no abastecimento de água ou na paisagem deslumbrante que se forma.
Agendamos para largar às sete da manhã. Um pequeno grupo de - cerca de três - caiaqueiros nos acompanharia em nosso primeiro dia. Seu desejo - bem como o nosso - era de largar antes das seis da manhã, mas as festividades na cidade e a presença da população e os discursos das autoridades políticas nos obrigaram a postergar ligeiramente o horário de largada.
Isto representaria um esforço maior, pois sabíamos que encontraríamos os maretões - grandes ondas contrárias ao nadador que se formam pela ação dos ventos fortes da região - mas estávamos lá para o que desse e viesse.
Ao chegar à beira do rio, percebi que seu nível estava sensivelmente mais baixo que no dia anterior - algo plenamente previsível devido ao fato de Xingó reduzir sua produção durante a madrugada - horário de menor consumo de energia. Isto queria dizer uma coisa: os redemoinhos que encontrei no dia anterior no final da tarde com o rio cheio estariam mais fortes naquela manhã. Avisei meus colegas de nado a  respeito e pedi-lhes muita atenção na região.

Os quatro nadadores e as autoridades de Piranhas que nos ajudaram em nossos esforços no dia da largada.

Uma hora antes da largada, um senhor da região veio nos procurar para pedir permissão para que seu sobrinho nadasse uma parte do trajeto conosco. Aquele tinha sido um sonho em sua vida - poder nadar uma grande extensão do rio - e ele gostaria de tentar.
Obviamente ficamos muito receosos, mas aceitamos sua participação desde que ele consentisse com nossas recomendações de segurança: nadar sempre junto ao barco dos Bombeiros e parar, quando sentisse que estava cansado. Não podíamos correr riscos. Rodrigo, como era seu nome, tinha cerca de 18 anos, um perfil bem atarracado, similar ao de maratonistas aquáticos e foi rapidamente apelidado de Tarzan do Cangaço. Conhecia muito bem o rio e deu grandes contribuições ao grupo.
Largamos por volta das 7:30h. A Marinha estava presente, bem como o Corpo de Bombeiros do Estado de Alagoas além do barco de apoio pilotado pelo Carlinhos. A estratégia ficou combinada entre todos os participantes da seguinte maneira:
1. começaríamos num ritmo maneiro de modo a passar por Caçamba e Mateus com segurança
2. após esta região, o Foschini e eu poderíamos nadar um pouco à frente enquanto os demais viriam logo atrás, num ritmo possivelmente mais lento
3. não era objetivo de ninguém chegar na frente de ninguém. Nosso objetivo era muito mais simples: chegar a Pão de Açúcar, a próxima cidade em nosso mapa, distante cerca de 45 Km rio abaixo.

O primeiro mergulho: o início de uma grande aventura!

Percebam que o Tarzan do Cangaço não usava óculos nem mesmo touca de natação. Ele não sabia o que era maltodextrina, não passou vaselina nas articulações e saiu assim, na raça, de sua cidade natal. Óbvio que, ao longo da travessia, nós o fomos convertendo aos princípios modernos da natação. Eu costumo dizer que "nós o estragamos" um pouco. Mas é fato que, poucas horas após a largada, suas axilas estavam assando, ele estava morrendo de fome e o sol já o estava incomodando um pouco - muito menos que a todos nós, mas ele também sentia a forte insolação da região.